terça-feira, 18 de dezembro de 2012

MANIFESTO DO FORUM INTERSETORIAL DE SAÚDE MENTAL DE MATO GROSSO SOBRE A OPERAÇÃO INTEGRADA DE SEGURANÇA PÚBLICA - ÁGAPE



O Fórum Intersetorial de Saúde Mental de MT (FISM) vem a público manifestar sua posição sobre o Plano de Operações nº 002/SESP/2012, que é uma Operação Integrada de Segurança Pública com foco nos moradores em situação de rua, que para a Secretaria de Segurança Pública - SESP são claramente usuários de drogas. Esta operação pretende “limpar” a cidade e promover a “paz social” em Cuiabá-MT, o que para nós do FISM é um grande equívoco.
Lembramos que o FISM defende as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), da Política Nacional de Saúde Mental, o cumprimento da Lei Federal nº 10.216/2001 conhecida como Lei da Saúde Mental e o relatório da IV Conferência Nacional de Saúde Mental (2010), que reafirmaram conceitos e diretrizes neste campo. Assim sendo, os debates e posições do FISM não são baseados em opiniões pessoais, mas sim posições coletivas, construídas a partir da experiência profissional e da escuta de familiares e usuários dos serviços do SUS bem como os vários espaços de debates sobre a Saúde Mental (Conselhos Estadual e Municipal de Saúde, Fóruns, Universidades, Sindicatos, Conselhos de classe e de direito, etc). Além disso, o FISM está em constante debate com outros movimentos sociais de todo o Brasil em prol da sustentação dos direitos das pessoas em sofrimento mental e/ou com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
Observa-se que as políticas públicas para o tratamento de pessoas em uso abusivo de drogas é “a bola da vez”, não só pelo motivo do aumento do número de pessoas em uso delas, mas também pelo modo como se poderá usar esta questão em prol de interesses individuais, de grupos e de políticos. Sendo assim estamos vendo políticos e gestores dos serviços públicos apresentarem à população medidas e intervenções imediatistas que reforçam ainda mais a exclusão e os mitos que envolvem esse campo. Propagam a internação compulsória como a única forma de tratamento justificada na incapacidade do usuário de drogas em definir o que quer, se colocando assim como os defensores da sociedade, dos mais fracos, querendo acabar com o “mal que assola nossa sociedade”. Esse discurso encobre uma dura realidade em nosso país: das desigualdades, da corrupção, do não investimento em saúde e educação.
O uso de drogas não surgiu em nossos dias. Há quantos séculos o homem se relaciona com substâncias psicoativas para se colocar em uma experiência física e mental para além de sua possibilidade de percepção? Guerras foram deflagradas por nações por causa do ópio (China e Inglaterra). O tabaco foi uma das descobertas mais lucrativas com a colonização das Américas. O álcool foi proibido nos tempos de recessão dos Estados Unidos para impedir o entorpecimento dos trabalhadores das fábricas, e assim não comprometer seus lucros.
Atualmente, uma pequena parcela da população tornou-se usuária e/ou dependente do crack e da pasta base de cocaína, pessoas estas que já se encontravam em vulnerabilidade social pelos mais diversos motivos e, que já possuíam inúmeros transtornos de ordem mental, emocional, social, mas ao passarem a representar um risco para a sociedade e um sintoma social que, segundo a lógica da “ordem e do progresso”, não servem para mais nada, devem ser retiradas do cenário, varrendo o lixo para debaixo do tapete. Em tempo, as drogas que mais matam continuam sendo o álcool e o tabaco.
Hoje, dezembro de 2012, está em ação um famigerado Plano de limpeza da cidade organizado pela SESP-MT (OPERAÇÃO INTEGRADA ÁGAPE), no intuito da lógica acima descrita, ou seja, muito mais de retirar pessoas assustadoras do cenário urbano do que em atendê-las em sua vulnerabilidade. Tratar a vulnerabilidade social é diminuir desigualdades em um processo firme, porém de médio a longo prazo, de forma intersetorial, pois a situação de rua tem origem multifatorial (desemprego, falta de educação, moradia, transtornos mentais, problemas familiares, violência no lar, etc).
Apesar do Plano de Operação Integrada Àgape ter sido divulgado que seria com a participação de vários setores do poder público, na prática não houve o diálogo para a intersetorialidade que um plano como este requer, e ainda sabe-se que os profissionais dos serviços de saúde mental que teriam que prestar alguma assistência foram somente comunicados da chegada de várias pessoas ao serviço, coagidos da mesma forma que os cidadãos de rua a responder somente a ordens e determinações, desqualificando assim qualquer avaliação por parte dos mesmos.
Esta “operação” (termo policial) tem como objetivo o “recolhimento, triagem e condução para local apropriado de tratamento”. É considerado por este plano que todas as pessoas em situação de rua são usuárias de drogas. Para o FISM a essência deste plano é estritamente repressiva, autoritária e aviltante, pois fala em “recolhimento”, coisificando pessoas como se fosse lixo, e fala de “resgate da paz social”, como se paz dependesse da retirada dessas pessoas das ruas. A propósito, a operação AGAPE (no grego significa amor de Deus), realizada em dezembro (NATAL) é no mínimo perversa, na medida em que se utiliza de um nome sugestivo de fraternidade e uma data comemorativa para impor uma certa lógica de “tratamento”. 
Para restituir a cidadania às pessoas marginalizadas socialmente é necessário o cumprimento de formas de organização de serviços já preconizadas pelo setor saúde, educação, assistência social, justiça, segurança pública, etc, mas falta vontade política e empenho dos gestores públicos.
As a ações esporádicas deste plano não podem e nem vai resolver o problema. As pessoas precisam de famílias sem violência, de trabalho, de saúde, de casa pra morar, de escola, etc. Não é uma internação obrigatória que isola do convívio, não é um remédio, um banho, uma roupa uma só vez que tira uma pessoa da situação de exclusão e abandono. Por isso, a maioria das pessoas que foram reprimidas e recolhidas por esta operação já está novamente na rua. Fugiram!
Cuiabá possui um serviço ligado à Secretaria Municipal de Saúde, preconizado na Política Nacional de Saúde Mental, que faz um trabalho de abordagem e acolhimento às pessoas em situação de rua encaminhando-as aos serviços públicos da cidade – o Consultório de Rua (CR). O vínculo e a confiança construída em um ano de trabalho do CR ficaram abalados, pois a operação, que representa o poder, veio em nome da “ordem e progresso” com repressão e compulsoriedade. O CR tem uma proposta acolhedora, de cuidado em saúde com as pessoas, de resgate da cidadania baseada em direitos, e devidamente executada por profissionais habilitados para tal, e portanto com todas as chances de efetivamente obter bons resultados.
O tratamento para a dependência química é bastante complexo, considerando os múltiplos fatores que envolvem o problema. A adesão ao tratamento é difícil, as recaídas fazem parte e dificuldades do manejo são infinitas, sem falar do trabalho de quebra de paradigmas junto a família e sociedade para uma tecnologia assistencial que  adota procedimentos baseados em conhecimentos científicos e não mais em posturas morais e religiosas que só reforçam preconceito e exclusão.
O que podemos esperar de uma operação em que o tratamento/assistência está associado a repressão e punição? Que resultado pode-se obter de uma ação como esta que não seja somente o aumento da dificuldade já existente para se alcançar esta população de forma que se vinculem a algum serviço e assim passem a ter possibilidades de recobrar a visibilidade, a saúde e a humanidade perdida, seja pelo uso de drogas ou de suas vulnerabilidades individuais, sociais, emocionais, familiares ou financeiras?
Finalizando, o FISM vem repudiar as ações da Operação Ágape realizadas em Cuiabá e adjacências, pois usam da autoridade estatal para violar princípios éticos e de cidadania com ações normalizadoras em detrimento de uma responsabilização necessária diante da grandeza do problema. O povo precisa é de cuidado!!